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Ibama libera Licença Prévia para Trecho do Meio sem consulta aos povos da floresta

Publicado em: 01/08/2022

Imagem aérea do Trecho do Meio da BR-319. Foto: Acervo/Idesam

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) emitiu no, final da tarde do dia 28 de julho, a Licença Prévia (LP) para o Trecho do Meio da rodovia BR-319. A medida vem cerca de 15 anos após o início dos estudos ambientais para a realização de obras na rodovia. Em todo esse tempo, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Trânsito (Dnit) ignorou sistematicamente etapas importantes dos estudos, como as consultas livres, prévias e informadas aos povos da floresta. Agora, a emissão da LP acontece em um momento delicado para a Amazônia e o Brasil: às vésperas das eleições presidenciais e quando a bioma registra recordes de desmatamento e focos de calor. Além disso, seria prudente que, antes da LP, a governança e a fiscalização na área de influência da rodovia fossem fortalecidas. Mas nada disso aconteceu. 

Em seis páginas, o documento elenca as ações e projetos que devem ser realizados a fim de se alcançar a emissão da próxima licença, a de instalação. Estas ações contemplam municípios, Terras Indígenas (TIs) e um distrito, além de condições para a obra de engenharia. 

O Observatório BR-319 (OBR-319) mantém a sua posição de defesa de um processo de licenciamento democrático, transparente e inclusivo, que respeite os direitos dos povos indígenas e tradicionais em territórios na área de influência da rodovia. “Vemos com grande preocupação a emissão da Licença Prévia para o Trecho do Meio da BR-319, principalmente neste momento de disputa eleitoral, em que esta decisão claramente possui motivação política. Etapas importantes deste processo foram ignoradas”, declarou a secretária executiva do OBR-319, Fernanda Meirelles. “No nosso entendimento, a LP ainda não pode ser emitida, uma vez que as consultas livres, prévias e informadas, como orienta a Convenção Nº169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), nunca foram realizadas com os povos indígenas e comunidades tradicionais que serão diretamente impactados por uma obra de infraestrutura desta magnitude. Sendo assim, o direito destes povos foi violado!”, acrescentou. 

Fernanda também alerta para a baixa governança na área de influência da rodovia, ações de fiscalização insuficientes e incapazes de combater a grilagem, as invasões, o desmatamento e a especulação fundiária, que vêm aumentando exponencialmente nos últimos anos. “Como agravante, as Unidades de Conservação e as Terras Indígenas, que deveriam ser protegidas, também estão sob constante e crescente ameaça, seja pela baixa gestão, falta de orçamento ou medidas legislativas e administrativas que enfraquecem estas áreas”, criticou. 

O cientista e prêmio Nobel da Paz, Philip Fearnside, avalia como um erro grave a aprovação da LP. “Primeiro, é muito contrário aos interesses nacionais do Brasil. A rodovia, juntamente com as estradas de conexão existentes e as estradas planejadas para se conectar à BR-319, como a AM-366, exporiam uma vasta área da floresta amazônica à pressão do Arco do Desmatamento. A área de floresta em risco é vital para o abastecimento de água da maior cidade do Brasil: São Paulo”, disse. “Em segundo lugar, a aprovação é ilegal porque nenhum dos povos indígenas impactados pela rodovia foi consultado de acordo com a Convenção 169 da OIT e a legislação brasileira correspondente”, reiterou. 

As 12 organizações membro do OBR-319 produziram uma nota de posicionamento sobre a emissão da Licença Prévia [link]. O documento elenca fatos importantes sobre a realização dos estudos de impacto ambiental e argumentos jurídicos sobre as violações cometidas sistematicamente pelo governo federal ao não ouvir os povos da floresta. A nota será encaminhada às autoridades e órgãos competentes.

Imagem do Trecho do Meio registrada em novembro de 2021, durante expedição de campo da Fundação Amazônia Sustentável (FAS). Foto: Orlando K. Jr./FAS

O que vem agora? 

A LP não autoriza a realização das obras no Trecho do Meio, apenas atesta a viabilidade ambiental do empreendimento BR-319 a partir dos estudos que já foram realizados, desde que as ações de mitigação indicadas pelo Ibama sejam cumpridas. Esta licença permite a criação de planos, programas e projetos ambientais detalhados e seus respectivos cronogramas de implementação; diretrizes do projeto de engenharia; inventário florestal; e demais estudos necessários para a execução da obra. No entanto, ela é uma das etapas necessárias para o alcance da Licença de Instalação (LI), a qual permite o início das obras de repavimentação do segmento. Esta próxima etapa deve levar alguns anos para ser atingida, pois exige o cumprimento de todos os projetos e ações previstos na LP mais a previsão orçamentária com destinação de recursos para a obra.  

Entre outras coisas, o Dnit deve criar um Programa de Indenização, Reassentamento e Desapropriação e realizar, previamente, as negociações individuais de desapropriação e reuniões comunitárias informativas com os proprietários rurais a serem afetados pelas obras. Também deve fazer a demarcação da Áreas de Preservação Permanente e das áreas onde existem nascentes de água, colinas, comunidades e outras áreas sensíveis na Faixa de Domínio da rodovia.  

O Dnit informou ao OBR-319 que já possui contrato firmado com a empresa de consultoria que elaborará a documentação para subsidiar a LI e que a previsão é que este trabalho tenha início no mês de agosto. “A obtenção da LI depende de informações mais detalhadas que estarão presentes no projeto de engenharia, que já está em atualização. O projeto subsidiará a licitação das obras. Deste modo, a etapa de obtenção da Licença de Instalação ocorre simultaneamente à atualização do projeto”, informou o órgão por e-mail. 

A LP tem validade de cinco anos, mas pode ser suspensa, cancelada ou ter suas condicionantes alteradas em caso de violações de condicionantes ou normas legais, omissão ou falsa descrição de informações relevantes, que subsidiaram a expedição da licença; e se acontecerem fatos que ofereçam graves riscos ambientais e à saúde.

Comunidade São Sebastião do Igapó-Açu e do rio Igapó-Açu, na RDS Igapó-Açu. Foto: Orlando K. Jr./FAS

Cautela 

O diretor da WCS Brasil, organização membro do OBR-319, Carlos César Durigan, avaliou que é impossível concordar com a viabilidade ambiental anuída pela LP. “Uma vez que ainda existem pontas soltas no processo todo e, neste caso específico, basicamente não temos garantias das agências de controle ambiental sobre as ações de fiscalização, controle e monitoramento nem da obra em si e seus impactos diretos, muito menos dos tantos problemas já registrados e relatados às instituições envolvidas, como tem sido o caso de abertura de ramais, ocupação de terras públicas destinadas, como é o caso de Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs), e não destinadas, que têm levado a uma explosão da degradação e desmatamento em toda a área de influência da BR-319”, disse Durigan. 

Ele alerta que a pressa sempre foi a inimiga do processo de licenciamento das obras na BR-319 e razão pela qual ele tem demorado tanto. “Ao longo de todo o processo, e nos últimos anos, o que temos visto é uma resistência dos órgãos envolvidos em fazer acontecer as etapas de levantamento de informações e as consultas prévias, livres e informadas aos povos indígenas e comunidades locais, como é preconizado pela Convenção 169 da OIT”, recorda. “Essas inclusive têm sido as principais causas de travamento do processo de asfaltamento e manutenção. Fazer direito já demandaria muito tempo e paciência, mas fazer de modo capenga vai levar a mais questionamentos e não deve agilizar o asfaltamento e sim gerar aberturas a processos jurídicos, além do que irá repercutir de forma negativa no cenário nacional e internacional”, avaliou Durigan. 

À imprensa, o Ministério Público Federal (MPF) disse que “vai realizar uma análise para definir medidas cabíveis sobre autorização prévia concedida pelo Ibama para a reconstrução do trecho do meio da BR-319”. 

Galeria em igarapé às margens da BR-319. Estruturas podem receber adequações para servirem de passagens de fauna. Foto: Izabel Santos/OBR-319

Pontos de destaque do texto da Licença Prévia

Indígenas 

Segundo a LP, devem ser criados Programas Básicos Ambientais do Componente Indígena (PBA-CI) para os povos Apurinã, Mura e Parintintin. Esses programas preveem a criação de ações de vigilância territorial, educação ambiental, geração de renda e fortalecimento institucional de organizações e associações indígenas. Outra medida de destaque é a inclusão da TI Ipixuna, excluída dos estudos, mas incluída nestas ações. Além disso, os povos Mura e Munduruku, solicitaram a criação de uma UC de uso sustentável. “Para emissão da Licença de Instalação deve ser apresentado o andamento do processo de criação da UC, de modo a garantir aos Mura que de fato irá acontecer a demarcação da UC de modo a se formar o bolsão de proteção as Terras Indígenas Lago Capanã e Ariramba, bem como garantir a continuidade de uso das áreas tradicionais do povo Mura”, diz trecho da LP. 

Municípios 

Os municípios interceptados pela BR-319 devem participar do Programa de Apoio e Revisão dos Planos Diretores, que prevê a consulta quanto ao interesse para elaboração, revisão ou atualização dos planos diretores municipais. No caso de Humaitá, além disso, o distrito Realidade, terá um programa de diagnóstico e planejamento para “identificar oportunidades de investimento para região, estimular a diversificação das atividades econômicas e fornecer alternativas para a população local, incluindo a qualificação de cadeias de atividades ligadas a própria dinâmica da rodovia”. A área do distrito é, hoje, o maior vetor de desmatamento na BR-319. 

Passagens de fauna 

De acordo com a LP, dentro do Programa de Proteção da Fauna estará o Subprograma de Monitoramento e Mitigação do Atropelamento de fauna e Monitoramento das Passagens de Fauna. O Dnit deve, ainda, apresentar as propostas de localização das passagens de fauna e indicar os pontos de monitoramento para “fins de travessia e mitigação de atropelamento de fauna, com base em análise de hotspots de atropelamento de fauna e demais análises da paisagem, visando a recuperação da conectividade e redução do efeito barreira.” 

Fiscalização 

A LP também traz a aprovação da instalação de três postos de monitoramento e segurança nos entroncamentos com a BR-230, com Manicoré e em Careiro Castanho. Estes pontos são os Portais da Amazônia, que serão bases de fiscalização com a presença da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e outros órgãos federias e estaduais. Segundo o texto da LP, eles devem ser instalados concomitantemente à implantação do empreendimento. 

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