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Maior desafio dos povos indígenas da área de influência da BR-319 é o respeito à consulta prévia e à autodeterminação

A Convenção 169 da OIT assegura aos povos indígenas o direito à consulta prévia, livre, informada e de boa-fé sobre decisões que venham a impactar seus bens ou direitos. No entanto, esse direito vem sendo desrespeitado.

Publicado em: 27/05/2021

Crédito: Samara Souza / WWF-Brasil

Os indígenas foram os primeiros habitantes do que hoje conhecemos como rodovia BR-319. A região está repleta de locais sagrados e culturalmente importantes para eles. Um dos maiores desafios que enfrentam, hoje, é a luta pelo respeito ao direito de decidirem por si sobre a realização de obras na estrada. Essas obras podem gerar impactos nos seus modos de vida tradicionais e ainda trazer problemas como invasões de terras e conflitos. No entanto, o processo de licenciamento ambiental realizado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) já está bastante avançado. O Estudo de Componente Indígena (ECI), fundamental para o processo de consulta, foi entregue em agosto do ano passado mas, até agora, o Governo Federal não se manifestou sobre o assunto.

“Já estão vindo fazendeiros de Boca do Acre e de Lábrea para cá. Isso não é bom, porque coloca nossas terras sob risco de invasão, principalmente as Terras Indígenas Tauamirim e Apurinã do Igarapé São João”, diz o coordenador geral da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp), Waldimiro Farias da Silva Apurinã, morador do município de Tapauá (AM).

Os Apurinã estão em, pelo menos, cinco terras indígenas na região. Waldimiro cita como exemplo ruim o impacto ambiental causado pela AM-366, cujo trajeto planejado para ter 578 quilômetros (km) de extensão deveria conectar o rio Madeira a Tapauá, seguindo para o município de Tefé. A estrada foi criada para cortar a Terra Indígena Apurinã Igarapé Tauamirim e o Parque Nacional Nascentes do Lago Jari. Embora ela ainda não exista, ramais não oficiais já foram verificados na região. “Essa estrada está matando todas as cabeceiras de rio, que chamamos mãe do rio, e favorecendo invasões de caçadores e outros problemas. Não estamos sendo consultados pelo Governo Federal. Isso não pode acontecer”, acrescenta o líder indígena.

A cerca de 10 km da BR-319 estão quatro territórios Mura, povo que está em, pelo menos, 33 terras indígenas na região. A liderança de Careiro da Várzea, Herton Mura, pondera que precisa haver diálogo e respeito às leis. “Eu, particularmente, não sou contra a rodovia. Mas quero que o governo consulte todos os povos indígenas, comunidades tradicionais e ribeirinhos que estão na área da estrada, que são os mais afetados”, destaca. “Bem ou mal, os indígenas são resguardados por políticas públicas amparadas em uma legislação educacional e de saúde, elas podem não funcionar como deveriam, mas existem. No entanto, outras populações estão mais vulneráveis que os indígenas nesse processo”, avalia Herton.

O Estudo de Componente Indígena (ECI) deve ser realizado em paralelo ao estudo de Impacto Ambiental, conhecidos pelas siglas EIA/RIMA, e antes do início de qualquer obra, pois é um detalhamento específico sobre os impactos que os povos indígenas sofrerão. Por isso ele acaba sendo a parte mais complexa de toda a prospecção dos impactos realizada antes da construção do empreendimento. E o mais importante: ele deve contar com a participação dos indígenas afetados pela obra, porque é através dele, quando bem-feito, que os indígenas conhecem o empreendimento, opinam e contribuem inclusive com seus saberes para a avaliação de quais serão as consequências.

O ECI faz parte do processo de licenciamento da rodovia e não substitui o direito dos povos de serem consultados segundo a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ou seja, ele é um produto obrigatório e as consultas prévias, livres e informadas, um direito garantido por lei. 

“Alguma coisa na vida dessas populações vai mudar com a construção desse empreendimento”, explica a assessora do Programa Povos Indígenas, do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), Marcela Menezes. “Para esse estudo ficar bom, tem que contar com a participação dos indígenas, porque eles que sabem como os seus territórios serão afetados”. Vários povos da Amazônia já construíram seus protocolos de consulta e disseram ao poder público como querem dialogar sobre os empreendimentos que possam afetá-los.

Crédito: Drance JÈsuz / WWF-Brasil

Exemplo emblemático 

Em 2010, os Mura foram surpreendidos pela empresa Potássio do Brasil com o anúncio de implantação de uma estrutura de exploração de silvinita na área entre as Terras Indígenas Jauary, Lago do Soares e Vila de Uricurituba. A empresa pretendia instalar no local uma mina subterrânea, estradas, um porto com acesso ao rio Madeira e até uma extensão de transmissão de energia do linhão Tucuruí – Manaus.

“Depois que reivindicamos o nosso direito à consulta, o próprio governo se perguntava ‘com quem nós vamos falar?’”, relata Herton, exemplificando o despreparo das autoridades para respeitar os direitos das populações originárias. “A consulta não evita o impacto de empreendimentos, mas serve para definir como vamos lidar com ele, por isso ela é tão necessária”, acrescenta. “O maior problema que temos hoje, e que pode se agravar, é a grilagem de terras. Quando o Presidente da República diz que vai regularizar terras invadidas, ele dá segurança aos grileiros, que intensificam as invasões. Quem está à beira da estrada, ou a uns 50 km a dentro, está sujeito a isso”, avalia. 

Para a liderança Mura, os envolvidos em processos de decisão sobre grandes empreendimentos na Amazônia ignoram alternativas a obras desse porte. “É comum falarem que os indígenas atrapalham o progresso do Brasil, mas esse dito progresso revela uma visão equivocada. Por exemplo, vi em um porto uma placa que diz ‘pelo fim do isolamento’, como se nós vivêssemos isolados esse tempo todo. Como chegaram aos meus antepassados? Como eu vivo e me desloco? É tudo uma questão de diálogo e boa vontade. Não existe apenas o modal o rodoviário”, comenta.

A disciplina para o respeito à legislação ambiental também preocupa quem pode ser afetado por grandes obras. “Todo mundo quer melhoria de vida, mas desde que sejam respeitados limites e valores. Junto com a pavimentação da rodovia vem uma série de problemas como a grilagem de terras, plantio de soja, de cana-de-açúcar, a pecuária. Pode olhar e ver como a floresta está ficando escassa. Ninguém respeita os limites impostos pela lei. Não entendem o lado espiritual e a nossa ligação com a floresta. Para nós, a floresta vale mais em pé. Não é porque moro em uma casa de alvenaria, que deixei de ser indígena e abandonei a minha ancestralidade”, finaliza Herton.

Direito à consulta deve ser respeitado

Em 2002, o Brasil ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio do Decreto Legislativo nº 143, em vigor desde 2003, e acolhida no ordenamento legal pelo Decreto nº 5.051/2004, o que a faz valer tanto quanto a Constituição Federal. A medida assegura que os povos indígenas e tribais têm direito à consulta prévia, livre, informada e de boa-fé sobre decisões que venham a impactar seus bens ou direitos. Ela surgiu em 1989 e, antes disso, muitos empreendimentos foram construídos à força e custaram a vida de populações inteiras.

O antropólogo e indigenista Bruno Walter Caporrino avalia como perigosíssima a demora do Governo Federal em realizar a consulta aos povos indígenas da área de influência da BR-319. “O texto dos tratados internacionais e da Constituição são claros: a consulta deve ser prévia. Nada pode ser feito antes que os indígenas digam se, como e quando querem ser consultados. Nem mesmo os estudos de impacto podem ser feitos antes disso, porque somente os próprios povos indígenas e tradicionais podem determinar se algo os afeta ou não”, explica.

“Somente por meio de processos sérios e respeitosos de consulta prévia, que sejam realmente livres, informados, de boa-fé e culturalmente adequados, como determina a legislação, é possível a qualquer povo tradicional conhecer de maneira mais aprofundada e de forma coletiva, sem ameaças, pressa ou chantagem, qualquer projeto ou medida”, explica Caporrino. O antropólogo assessorou as organizações Mura a criar o ‘Trincheiras: Yandé Mura Peara, o Protocolo de Consulta e Consentimento dos Mura de Autazes e Careiro da Várzea, no Amazonas’. “Quando a consulta acontece, desastres são evitados e as propostas e projetos são aperfeiçoados. Todos ganham”, enfatiza.

Minidocumentário

Em 2019, antes do início da pandemia, lideradas pela WWF-Brasil, as organizações membro do Observatório BR- 319, MPF-AM, Cimi e outros, promoveram em Manaus (AM) e Tapauá (AM) duas oficinas sobre protocolos de consulta. O evento reuniu 145 lideranças indígenas em torno da discussão sobre a importância da consulta para o fortalecimento das organizações indígenas. Os eventos resultaram em um minidocumentário com depoimentos e explicações de lideranças, autoridades e pesquisadores sobre o assunto. Clique e assista.

Edição 18 – Abril 2021 – Destaques

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